O mês de novembro traz um data importante para o movimento negro: o Dia da Consciência Negra. O dia 20 de novembro é uma data simbólica na qual se memoriza a morte do Zumbi dos Palmares, um grande líder do Quilombo dos Palmares no século XVII. Zumbi é considerado um símbolo de liberdade, de luta contra a escravidão e é reconhecido pela comunidade negra como uma grande líderança.
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Essa data é importante para a reflexão sobre as questões raciais no Brasil, mas o debate não pode se limitar a um dia. Embora represente 56% do total de brasileiros, a população negra sofre diariamente com a desigualdade social, o racismo e a violência.
Para entender mais sobre esse assunto, o Melhor Escola conversou com o Professor Doutor Juarez Tadeu de Paula Xavier, que é docente da Unesp (Faac- Bauru), presidente da comissão de averiguação das autodeclarações para pretos e pardos nos concursos vestibular, coordenador do Projeto Educando para a Diversidade e membro da coordenação executivo do Núcloe Negro Unesp para Pesquisa e Extensão [NUPE].
1- O mês de novembro costuma ser marcado por debates e reflexões sobre o Movimento Negro. O que está por trás da celebração do Dia da Consciência Negra?
JUAREZ: É importante considerar que desde 1978 haviam movimentos políticos da população negra no sentido de rediscutir os impactos da escravização negra no Brasil no período pós-abolição. Com eles estão os fundamentos daquilo que se chamou de desigualdade estrutural na sociedade brasileira, negando, portanto, a política da suposta democracia racial.
Abre-se um processo novo, inaugurado em 1978, com a fundação do Movimento Negro, contra a discriminação racial e que traz esse debate polito nacional na necessidade de se fazer uma reflexão sobre essa situação.
Quando ingressa no século 21 há a necessidade de avançar na adoção dessas políticas. Então em 2003 decide-se pela celebração do 20 de novembro como sendo o Dia Nacional Zumbi da Consciência Negra. E também em 2003 é que se tem a provação da Lei 10639, que determina o ensino obrigatório da história da África e dos africanos na educação básica, pública e privada. Então faz parte de uma série de ações que têm um impacto forte na educação
A ideia era que você pudesse na celebração desse dia fazer um contraponto ao dia 13 de maio e com três objetivos centrais de celebração.
2- Quais seriam os objetivos do Movimento Negro com a articulação dessas ações?
JUAREZ: O primeiro objetivo é que você pudesse diluir a ideia da democracia racial. Os dados apontavam para uma versão diferente da versão oficial. Havia um processo de observação da segregação sistêmica na questão da renda, na formação cultural, na ocupação do território e na elaboração de políticas. Então o objetivo era fazer a crítica a construção do modelo que se formava naquele momento na sociedade brasileira
O segundo era discutir a realidade concreta da situação negra. Os dados que estavam sendo gerados a partir do século XXI eram dados desconhecidos até os anos 1980. A ditadura civil militar tinha como política impedir o debate sobre as questões étnicas raciais e não se tinha dados sobre as condições de vida e morte. Então a população negra se considerava minoria na década de 1970.
Há um ponto de reflexão importante nessa discussão que é onde em 1995, quando no 20 de novembro, o Movimento Social de Negros faz uma manifestação em Brasília. O então presidente da república, Fernando Henrique Cardoso, reconhece que o estado brasileiro provoca o racismo e que era necessário ter políticas públicas. Ele monta um grupo de trabalho interministerial que vai gerando os dados: em relação a mulher negra, que é o ser social mais violentado na sociedade brasileira; em relação aos jovens negros, que são “abatidos” pela violência social, o termo da época era esse, sendo o grupo que mais sofre com a violência social.
Por fim, o terceiro objetivo, que parece muito interessante para época que nós estamos discutindo, era apontar a necessidade de políticas de ação afirmativas reversíveis. Por isso que coincidem a instalação do Dia Nacional da Consciência Negra com o ano em que é aprovado a Lei 10639, tendo impacto na formação escolar. Essa lei tem um papel importante nessa estrutura de debate.
3- O que podemos observar sobre a adoção de políticas públicas no Brasil daquela época?
JUAREZ: Só para se ter uma ideia, as políticas públicas de ação afirmativa foram adotadas ao longo do século XX, entre 1945 e 1975. O Brasil é o último país da sua classe econômica e social a adotar essas políticas, já no século XXI, portanto, mais de 100 anos depois do processo abolicionista. Isso mostra a urgência de se ter políticas públicas para que se pudesse fazer um enfrentamento às assimetrias sociais a partir dos marcadores de étnicos raciais.
Como não se tinham os dados de maneira sistemática, até anos 1990, isso impede qualquer política pública. Entre 1964 e 1985, a ditadura tirou a categoria de autodeclaração no censo demográfico. Quando volta essa observação, a partir do processo de democratização, havia mais de 130 definições para não brancos na sociedade brasileira.
Então decide-se pela referência de fenotipia, considerando que diferente dos Estados Unidos, a discriminação no Brasil ocorre pela cor da pele e não pela origem. Dessa maneira, optou-se por trabalhar com as categorias que o IBGE trabalha hoje, que são preto, pardo, amarelo, indígena e branco. Então é a partir da articulação das categorias preto e pardo que se tem a realidade da população negra, que forma a maioria da sociedade brasileira.
4- Como podemos dar visibilidade para o Dia da Consciência Negra?
JUAREZ: Eu diria que existem quatro questões importantes. A primeira é estabelecer um debate sobre as discussões das relações étnico-raciais na sociedade brasileira. Esse é o grande objetivo. A data, em si, é um ponto que marca a necessidade desse debate, mas a ideia é que ela não se restrinja apenas ao 20 de novembro. O objetivo é que se faça um debate permanente sobre as relações étnico-raciais no Brasil e a necessidade de políticas públicas para vc atingir uma situação equani.
Mas por que isso? Porque o Brasil tem pré-condições que trouxeram a população negra a condição que ela vive hoje. O Brasil foi o país que mais desenvolveu a política de tráfico humano. Dos 12,5 milhões de africanos, africanas e crianças escravizados, 4,9 milhões vieram para o Brasil. Ou seja, um terço da população escravizada veio para o Brasil.
No período colonial, havia o processo de substituição quase que de descartabilidade das pessoas negras e se criou o critério de subcidadania, muito perverso na sociedade brasileira. Em função da política adotada no final do século XIX, aprofunda-se no Brasil o apartheid entre brancos e negros, assegurando a substituição da populaçao negra pela população imigrante, chegada entre 1870 e 1930. Em especial portugueses, espanhois e italianos.
A segunda questão é a necessidade de fazer comparativos entre as condições de vida da população negra e da população branca no Brasil. As diferenças são abissais. A ideia é que as pessoas compreendam que não é possível desenvolver o país de forma consistente com esse brutal processo de separação e segregação. Isso porque a população negra representa mais de 56% da população brasileira. Então você tem uma política que segrega, do ponto de vista econômico, cultural, social, e político para a maior parte da população brasileira.
5- Quais seriam as outras duas questões importantes para esse debate permanente envolvendo o Movimento Negro no Brasil?
JUAREZ: A terceira questão do debate é que é necessário pensar políticas públicas de inclusão consideradas universais, que atendam a demanda da população pobre de modo geral. Como por exemplo a defesa do SUS, a defesa da educação inclusiva de qualidade e pública para todos os setores, a defesa da universidade pública, democrática e inclusiva. Além disso, fazer com que essas políticas universais atendam todas as pessoas em condições de vulnerabilidade.
Mas associada a essas políticas universais, as políticas afirmativas para a população negra. Porque observou-se que as políticas universais não são capazes de assegurar a condição exequanima para a população negra. Muito pelo contrário, elas tem perpetuado a diferença entre negros e brancos na sociedade brasileira
Por fim, a quarta questão, e essa me parece fundamental, por isso o Dia da Consciência Negra, é criar condições para que seja feito um debate público sobre a imoralidade do racismo no Brasil.
Em função do histórico do Brasil, é preciso apontar que a superação das mazelas do racismo é resposnabilidade do ponto de vista ético de negros e brancos. Não é responsabilidade exclusiva da população negra. É uma responsabilidade de todos aqueles que vivem no território nacional e portanto tem responsabilidades junto a construção de um projeto social diferente e inclusivo para a sociedade brasileira.
6 – Olhando para o racismo que funda as instituições materiais e imateriais da sociedade brasileira, como a escola reproduz essas relações sistêmicas?
JUAREZ: O racismo sistêmico funda as escolas, estrutura o acesso às escolas e replica internamente as práticas do preconceito, da discriminação e do racismo. Então do ponto de vista dos processos, ele [ambiente escolar] de uma certa forma retroalimenta as relações assimétricas da sociedade e solidifica as relações de discriminação na sociedade. De alguns pontos de vista importantes.
Epistemico, onde ele acaba consolidando uma visão de supremacia branca, pelo conteudo escolar, pelas práticas escolares, pela forma como as relações são instituídas, pelas formas de distribuição da economia dos afetos.
Esse supremacismo branco também se dá no ponto de vista teórico. São raríssimos os teóricos não brancos e não homens que são utilizados como referência escolar. São raríssimas as presenças das mulheres, e mais rara ainda as bibliografias que contem mulheres negras e homens negros. Então, você tem do ponto de vista teórico um enquadramento que não corresponde a grande maioria da crianças que estão no processo de aprendizado escolar.
Você também tem metódicas que fortalecem esses procedimentos. Por exemplo, é constrangedor para uma criança negra a manifestação do 13 de maio. Assim como também é constrangedor para a criança negra a discussão sobre a questão da escravização. Muitas vezes os professores não tem reparo para abordar isso em sala de aula. Então o que poderia ser um momento de reflexão das crianças, muitas vezes se converte em condições de violência contra as crianças negras. Raríssimas são as crianças negras que passaram por essa experiência escolar sem ter sofrido qualquer tipo de bullying ou violência após essas aulas.
E há também um problema sério quanto ao não engajamento dos docentes nessa discussão política de uma forma adequada. Por exemplo, trabalha-se com a obra de monteiro lobato sem considerar os traços racistas que essa obra tem.
7- O que pode ser observado no estabelecimento de hierarquias dentro do espaço escolar?
JUAREZ: Ele vai estabelecendo os lugares das pessoas na estrutura social. Você tem um conjunto de professores, normalmente brancos. Um conjunto de gestores também brancos. E você tem um conjuto de servidores, muitas vezes em condições vulneváveis de trabalho, formado por negros. Então você vai instituindo papéis sociais na cabeça dessas crianças.
Aos branco cabem a gestão e os processos educacional, enquantro aos negros cabe o trabalho braçal. E essas pessoas são figuras invisíveis dentro da estrutura educacional. Você institui relações entre a sociedade e entre os alunos também. Normalmente o que se vê nas salas, são os alunos brancos na frente e os negros no fundo. Então vai se instituindo hierarquias a partir desse procedimento.
Outra questão importante é que pouquíssimo são os docentes que compreendem a necessidade de ter uma formação permanente, efetiva e de melhor qualidade sobre as relações étnico-raciais do Brasil. O elemento fundamental desse processo é qualificação permanente do professor.
Quando ele tem uma formação permanente para uma educação múltipla baseada na Lei 10639 e que mudou a LDB, ele pode ter condições para oferecer um ambiente mais equânime, mais respeitoso, mais diverso e mais plural para as crianças que estão no processo de aprendizagem.
É necessário ter essa formação para que os elementos preconceituosos do dia-a-dia não sejam reproduzidos de forma inconsciente pelo professor em sala de sala, provocando um desconforto nos alunos.
8- Quais mudanças a escola deve propor dentro do seu próprio espaço para contribuir com as questões observadas?
JUAREZ: A primeira questão, acredito eu, seria adotar os pressupostos da LDB. A Lei 10639 muda a LDB e mais tarde ela é modificada com a inclusão do educação e ensino sobre a cultura indigena. Isso é fundamental. Lamentavelmente ela tem sido ignorada, por estados e municípios. A lei 10639 não muda a LDB mas nem todos os professores conhecem a legislação, ou discutem a LDB e suas funções.
Dessa forma, o processo de formação permanente se faz muito necessário. O problema não é apresentar para os alunos a literatura do Monteiro Lobato. O problema é elas terem acesso a esse conteúdo sem uma mediação inteligente e crítica do professor. Ele precisa se formar para poder lidar com isso e compreender como essas questões estão vinculada com todas as áreas do conhecimento. Nas ciências humanas, mas também nas ciências biológicas e exatas.
A partir dessa questão, vem um segundo aspecto. Estabelecer mecanismos pedagógicos na sala de aula que permitam uma relação dialógica e simétrica entre alunos e professores. É necessário, por exemplo, que se institua mecanismos concretos, que a literatura escolar tenha apontado, e que permitam processos mais democráticos no debate com os alunos
O terceiro é procurar acessar e adotar recursos didático pedagógicos adequados. Como recursos áudio visuais e concretos que expressam uma visão ampla das condições de formação.
Por fim, a discussão para as relações étnico-raciais democráticas não é uma responsabilidade exclusiva dos professores negros, ela é uma necessidade essencial do processo educacional no Brasil. As pessoas que estão envolvidas no processo educacional, em todos os sistemas educacionais, precisam ter, segundo a lei, esse espírito da responsabilidade no processo da educação cidadã. Não é uma responssbailidade só dos professores e professoras negros. Eles têm feito isso quase que sozinhos nas instituições escolares.
9- O que deve ser observado ao propor essas mudanças nos espaços escolares?
JUAREZ: O objetivo é a partir dessas ações e desse comportamento crítico ir dissolvendo as práticas que retroalimentam o racismo na sociedade brasileira, por isso a ideia de uma educação cidadã. Então é necessário repensar, por exemplo, a política escolar no que se refere a organização da cultura. É importante repensar a forma com que se faz a separação entre culturas hegemônicas e culturas subalternas, essa é uma visão muito fora da realidade das políticas sociais.
Há uma questão específica no ambiente escolar, que deve ser tratada pelo professor, como cidadão e especialista nessa área, mas é necessário se ter um conjunto de políticas públicas para também fazer um enfrentamento do racismo fora do ambiente escolar.
10- Como podemos enxergar o racismo dentro da construção da sociedade brasileira?
JUAREZ: Nós vivemos em uma sociedade em que o racismo é sistêmico. Isso significa que ele está em todas as dimensões materiais e imateriais da sociedade, em todas as relações sociais e interpessoais, e tem impacto em todas as dimensões: econômica, cultural, social e política.
O racismo é sistêmico porque funda as instituições, tanto as instituições do estado, do ponto de vista da ação material. Por exemplo, ele funda a educação, a saúde e o sistema prisional.
Se pegarmos esse marco de 1808, com a chegada da família real, ele [o racismo] estrutura a sociedade brasileira no que diz respeito ao acesso ao chamados capitais. Sobre o capital econômico, basta observar o perfil de que no topo está a população branca e na base é a população negra.
Ele estrutura o sistema de acesso ao território das regiões centrais, ocupadas pelas tecnologias que permitem o exercício da cidadania: melhores hospitais, melhores escolas, água encanada, coleta de lixo, etc. Nessa região está a população branca e na periferia está a população negra. Mas ele também estrutura o capital político. Saiu ontem uma pesquisa* falando que os prefeitos eleitos no primeiro turno são homens, brancos, de 49 anos, conservadores e casados. É nesse sentido que ele é estruturante.
E ele é fundandate porque ele replica no cotidiano da sociedade brasielira o preconceito, a visão de menor valia do negro, a segregação espacial, politicia e conceitual da população negra.
Então é importante considerar que esse racismo sistêmico funda instituições, estrutura o acesso ao exercício da cidadania e replica sistemas de violência contra a população negra, articulando um sistema de privilégios para a população branca.
*A pesquisa citada pelo professor pode ser consultada clicando aqui.