Manifestações contra o racismo e a violência policial tomaram as ruas e as redes sociais nas últimas semanas. O movimento começou nos Estados Unidos após o assassinato de George Floyd e se espalhou globalmente. O ex-segurança negro, de 46 anos, foi morto por um policial branco no dia 25 de maio, em Minneapolis. Casos como esse e dos brasileiros João Pedro (14 anos), Ágatha Félix (8 anos), Kauê Ribeiro dos Santos (12 anos) e Kauan Rosário (11 anos) reforçam a importância dos debates sobre preconceito e discriminação racial.
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Embora a luta contra o racismo tenha se tornado mais presente na sociedade, ainda há uma longa jornada a ser percorrida para que a aceitação da diversidade seja uma realidade. Desse modo, é fundamental refletir sobre o racismo, e todas as formas de preconceito, desde a pré-escola, uma vez que essas questões fazem parte dos estudos sociológicos.
O Melhor Escola conversou com Rosália Maria, psicóloga mestra em educação e pós-graduada em educação social, para entender qual é o papel da escola nesse movimento.
Como as situações envolvendo o racismo podem ser abordadas em sala de aula?
Rosália: Nós precisamos naturalizar a questão da diversidade mesmo que não haja nenhuma criança negra na sala de aula. Nós somos o segundo país mais negro do mundo então, em algum momento, toda criança vai ter contato com pessoas negras
Se a gente pegar qualquer livro de educação infantil ou história do ensino fundamental, vamos ver que o povo brasileiro foi formado pelos brancos, pelos índios e pelos negros. Então, colocar essa diversidade no dia a dia da escola, de uma maneira que seja verdadeiramente naturalizada, não é difícil.
Como fazer isso? Por meio de leituras que trazem personagens negros e negras, enfeitando a sala de aula com figuras humanas de acordo com as suas características: negras, gordas, altas, baixas…Trazer para a sala de aula toda a diversidade que a gente tem em termos de características, mas principalmente tratando da questão da negritude. Ou seja, tratar essa questão com visibilidade.
Você acredita que a história do povo negro é bem apresentada?
Rosália: Nós participamos da construção do país desde o início da colonização, nós fomos trazidos para a colonizar. Não nascemos dentro de uma senzala. Nossa história foi interrompida dentro das senzalas mas ela começa no continente africano. Se a gente começar no Egito, já vai ver uma quantidade enorme de riquezas que podem ser apresentadas não só em em história, mas também nas matérias de física, ciência e química.
Muitas vezes falamos da cultura negra somente quando há um conflito, quando ocorrem ofensas relacionadas ao tom de pele, em manifestações de racismo. Além disso, não devemos tratar todas essas questões [história, cultura, racismo] somente nos meses de Maio e Novembro, ou sempre que o assunto for a libertação da escravatura.
As datas desses dois meses existem para reflexão, e não para tratar do povo negro. Nós estamos aqui o tempo todo, todos os dias. E é importante que a presença do povo negro de modo geral seja naturalizada para as crianças no ambiente escolar. Nossa história é muito rica! É tanta coisa para se explorar que precisaríamos do ano inteiro.
Falando de identidade, como a representatividade dentro da escola impacta o desenvolvimento psicossocial da criança?
Rosália: Nós, o povo negro, fomos legalmente impedidos de frequentar a escola por muitos anos. A posição de subserviência está diretamente ligado a isso. Observa dentro da escola quais são as características da professora, da diretora, das coordenadoras. Depois, quais são as características de quem está ocupando os postos de limpeza e conservação da escola. A criança, ali dentro da escola mesmo, já vai criando suas identidades. As crianças que não sabem como essa estrutura racista foi montada, vão internalizar o corpo negro sempre em posição de subserviência, isso passa a ser naturalizado. Se o quadro de funcionário não inclui professoras e diretoras negras, é preciso então trazer pelo menos a história do povo.
Na escola, a criança negra também está construindo sua identidade, criando suas relações interpessoais. Portanto, a gente precisa preservar a autoestima dessa criança, visto que em um futuro muito próximo nós sabemos que ela vai apresentar uma série de transtornos, incluindo dificuldades de aprendizagem. A estrutura do racismo foi muito bem construída ao longo do tempo e nós precisamos acabar com ela.
É possível observar isso pelo silenciamento da criança negra, porque quem é que quer se impor diante de uma história de escravagismo? Quem é que quer ser visto quando a maioria dos coleguinhas começam a rir porque a figura que trazem do povo negro é o Saci Pererê? Devemos observar a maneira como os personagens negros são colocados dentro dos livros didáticos. A escola tem que ter essa responsabilidade.
Nesse caso, o que a escola pode fazer para mudar essa realidade?
Rosália: Quando conta-se a história de um negro e de uma negra, deve ser feita uma reflexão: como eu estou apresentando esse povo? A escola deve apresentar a negritude dentro do material didático em vários segmentos, e não em um único. Porque desse modo você naturaliza não apenas para as crianças negras como para as crianças brancas um lugar e um corpo. Com essa naturalização, se eu sou uma criança negra dentro da escola, eu vou me ver sempre.
Isso é o poder da branquitude naturalizando a posição de um corpo. Precisamos refletir sobre isso porque a criança negra vai ter uma imagem distorcida dela mesma. E não só a criança negra, como a criança branca também. O branco vai crescer com a ideia de superioridade e o negro com a ideia de inferioridade. Olha só como são imagens e ideias distorcidas. E como que a gente rompe com isso? Parando de naturalizar os corpos negros como marginais, associados a criminalidade, como aqueles que não lutam.
Nós precisamos contar a história e falar dos privilégios. Parar de falar de negritude e falar mais sobre branquitude. Falar sobre essa herança da branquitude e por isso ela se encontram em lugares que a nós ainda não alcançamos. Desse modo, cria-se uma mentalidade de respeito por todas as diferenças, além do resgate da sensibilidade e emprego na construção de uma educação emancipadora.
A escola deveria então mudar a perspectiva com que conta a história?
Rosália: Todo o discurso é feito sempre a partir da negritude mas ser branco também é uma identidade. O negro é raça assim como o branco também é. A gente precisa naturalizar nossas condições enquanto seres humanos, todos os dias.
Nós não somos iguais e é importante que a gente trate essas diferenças. Porque se a gente fica invisibilizando isso, não faz sentido para as crianças, que percebem essas diferenças e sabem que elas existem. É importante que elas sejam postas de uma maneira bacana, de uma maneira legal.
A diferença não está só no tom de pele, mas também nas alturas, nas cores dos cabelos, nos olhos. Existem várias formas de se tratar as diferenças para que as crianças se apropriem dessa questão, de que ser diferente é legal e nada nos impede de sermos diferentes e sermos respeitosos.
Outro detalhe é não utilizar também o branco como um parâmetro de comparação. Se você não é branco, você é diferente. Na maioria das vezes é isso que acontece, o branco é universal e o outro que se torna diferente. Devemos então tratar das diferenças sim, como algo importante, e que deve ser respeitado.
Existem muitas formas de se fazer isso e nós precisamos buscar outras leituras, outros autores. Não estamos falando no sentido de desconstruir tudo o que temos hoje, mas que nós possamos selecionar o que temos de bom, para manter. E também olhar para o que não é bom e não devemos continuar usando. Assim com essa ressignificação, nós trazemos essas outras culturas, que sempre existiram mas nunca foram notadas. Sem dúvida caminharemos para um mundo maravilhoso onde a humanidade será resgatada.
Qual a melhor maneira de apresentar essas diferenças?
Rosália: Por meio da equidade. Quando nós formos tratar das diferenças, elas não podem ser equiparadas. Eu não posso tratar todos e todas da mesma forma se as oportunidades não são as mesmas. Aqui, entramos também nas questões sociais, que também devem ser debatidas. Existem as diferenças de causas genéticas e também existem as diferenças por questões sociais.
Vale dizer que também não podemos esquecer dos povos indígenas, os donos da terra. Tudo isso aqui sempre foi deles e a gente precisa também trazer essa pauta para discussão.
Não preciso esperar algo grandioso acontecer, como a morte de uma Mariele, um João, um Pedro, um Iago e uma Maria para depois falar sobre a violência contra o povo negro, para falar sobre respeito. Só não ser racista já não basta mais, como diz Angela Davis, nós precisamos ser antirracistas .
Como as situações envolvendo rascimo devem ser tratadas?
Rosália: A primeira coisa a se fazer é acolher essas criança e não minimizar sua dor e o seu sofrimento dizendo “ah, não ligue”, “ele é bobo” ou “ela é mal educada”. É preciso trazer a situação para uma contextualização e construir juntos uma reflexão sobre o que aconteceu. Não dá para fingir que nada está acontecendo e deixa pra lá. Quando uma pessoa faz um comentário ofensivo, ela está legitimando aquela condição como sendo desagradável, violenta e desnecessária.
A responsabilidade trazer da reflexão deve ser levada para todos, não só acolhendo a criança que é vítima do racismo mas também com a criança que está praticando. Todos precisam compreender a gravidade da situação: o quanto a criança que fala está sendo violenta e o quando a outra está sendo violentada
As crianças estão inseridas em uma sociedade racista e se nós queremos que esse racismo desapareça. Para isso, nós precisamos de ações e atitudes antirracistas.
De que forma devemos conversar sobre violência com as crianças?
Rosália: Nossas crianças são muito sensíveis. Muitos experimentos feitos com crianças, colocando-as diante de situações de violência, mostram que elas demonstram muita empatia. Quem tenta camuflar tudo isso é o adulto, talvez até mesmo por meio de um mecanismo de defesa que tenta diminuir a própria dor.
A estratégia deve ser sempre colocar a criança para refletir com as perguntas: o que vc acha sobre isso? O que vc pensa? Você sabe o que é racismo? Se engana quem acha que elas não entendem. As crianças veem tudo, ouvem notícias e elas estão o tempo todo interagindo, especialmente com adultos.
Obviamente que dentro das suas limitações, mas elas dão conta de entender o que está acontecendo. Nós adultos é que preferimos naturalizar determinadas coisas, nos manter numa zona de conforto quando algo nos traz incômodo. A gente não pode fazer de conta que nada está acontecendo ou querer minimizar a dor do outro.
A criança presta atenção em tudo e leva isso pra vida adulta. Se quisermos adultos mentalmente protegidos, com uma saúde emocional protegida, ou pelo menos equilibrada, nós precisamos cuidar das nossas crianças aqui e agora. Não é no futuro, quando eles forem adultos.